domingo, 5 de julho de 2015

CLARÍCIA (Joyce Pires)

CLARÍCIA (25 março 1999)



Criar sobre a vida e entender é um modo de ser. Dizer o que conheço de mim mesma é uma forma de conhecer além do âmbito psicológico. E é esse aspecto da vida que me interessa porque é novo. O que transcende a imagem e aponta para fora da clausura histórica, da escritura. A possível liberdade de inventarmos um outro modo de coexistência saído das entranhas das estruturas que já estão passadas, que já não nos servem. De meu silêncio profundo, saindo de meu sono e do sonho, articular um dizer que o outro compreenda. Quando falo é porque estou sendo capaz de entender e isso nos dá o sentido: uma linguagem silenciosa que tem uma claridade natural. Em silêncio posso falar e não causar espanto. Morrendo direi mais e melhor. A realidade é delicada. A vida é delicada. Cada vida. De cada ser. Esse país vai se libertar quando me acolher, me assumir e se reintegrar. Porque eu sou aquele marginal marginalizado.

A liberdade é renovada e aberta no fazer humano; é pelo desejo que emerge a criatividade; esta é a finalidade da História feita pela paixão: o valor é o homem quem faz. Minha vida é minha História. O ser imanente expressa a criatividade e a alegria. É uma serena confiança no devir que repousa na eternidade. Vemos o mundo com a serenidade que o desejo do eterno faz nascer na alma de todos os seres sencientes. É a potência do desejo contra um poder que fixa a vida como uma aparência, um espetáculo. Nosso mundo está para ser construído: um novo mundo. Há que resistir ! Nossa consistência como ser e indivíduo de uma comunidade se dá na medida em que nossa vida emerge em ato de resistência e de recriação. Os poderes necessitam excluir aqueles que resistem com a própria vida. O excluído é um risco para o mundo, quando sua presença aponta para a liberdade e a alegria. O desejo que liberta nasce como sabedoria. A sociedade exclui aqueles que sabem, porque não pode correr o risco da memória viva; a memória que não se deixou corromper pelos sucessos fáceis. O silêncio é a proteção oficializada daqueles que se resignaram diante da força oficializada. A loucura é a explicitação da eficácia simbólica. Porque os que compreendem a “ verdade dominante” não têm como comunicar sua própria compreensão da realidade. A alienação é o desvio, a marginalização. A sociedade marginaliza porque não pode correr o risco da presença libertária. Daquele que saiu do âmbito da necessidade e age no âmbito da Lieberdade.



Sim. Sou brasileira, carioca da Vila... Isabel. Era onde meus pais moravam quando nasci. Gosto de samba e de chorinho, de Pixinguinha e Noel e do Martinho. Da Verde e Rosa, do Salgueiro, da Portela... Mas, ainda sou celta; mesmo assim, sendo tão carioca ainda sou celta e não tenho como me desfazer dessa cabeça belga... e surrealista. Mas, ainda não sou só isso: na longa rede dos meus sonhos vejo outros seres tão possíveis quanto eu mesma revivendo em mim. Um peregrino nos Pirineus, estóico e sobranceiro; um amante extasiado que adora sua amada à distância; a mãe que cuida de seus filhos ao lado do esposo e varre uma sala numa pequena casa em Mar de Espanha... De repente, um índio pataxó na beira do rio; uma menina japonesa correndo pela rua, em Nagasaki, no momento da explosão. Um pedreiro. E o insistente buscador de pérolas no fundo dos oceanos. Imagens ? e nasce nasce nascenascenascenascenas.



Os seres existem os outros como modo de se verem, disse Clarice.



Spinoza, o filósofo holandês Baruch Spinoza (Amsterdam 1632-77), dizia: “ Quanto mais apto é um corpo em comparação aos demais para agir e para sofrer de muitos modos, de cada vez, tanto mais apta é a alma deste corpo, em comparação com os demais para conhecer muitas coisas de cada vez; e quanto mais dependam destas, as ações, de um corpo, e menos corpos concorram com aquelas causas na ação, tanto mais apta é a alma deste corpo para as conhecer, distintamente”. Ele dizia que “ o desejo é o apetite com consciência de si mesmo” (...) “Julgamos que uma coisa é boa porque nos esforçamos por obtê-la, a queremos, a apetecemos, a desejamos”. “ A razão em que os homens se fundam para se julgarem livres, está na consciência das suas ações e na ignorância das causas que determinaram; além do mais, os decretos da alma não são mais que os próprios apetites e variam, por conseqüência, seguindo a disposição variável do corpo”. “Um desejo que nasce da alegria é mais forte, em igualdade de condições, que um desejo que nasce da tristeza”. “Um homem livre não pensa em coisa alguma, nem na morte; sua sabedoria é uma meditação, não em torno da morte, mas em torno da vida”. “Só os homens livres são muito agradecidos uns aos outros”. “Tudo o que é belo é também difícil e raro”. Ele polia as nossas lentes.



E ela clariciava: Tudo está. Quando eu precisar eu terei. O grande vazio em mim será o meu lugar de existir; minha pobreza extrema será uma grande vontade. Não. Não quero te dar o susto do meu amor. Ser usado é um modo de ser compreendido. A humildade é muito mais que um sentimento; é a realidade vista pelo mínimo bom-senso. Toda vida é uma missão secreta. Chego à altura de poder cair, estremeço e desisto e, finalmente, me votando à minha queda, despessoal, sem voz própria, finalmente sem mim - eis que tudo o que não tenho é que é meu. Tudo estará em mim , se eu não for.

- O clarear violeta, por exemplo, das quaresmeiras no verde da mata.

(Viburno, crônicas brasileiras – do livro Monólogos do Dilema – teatro -Joyce Pires – fevereiro 1999).

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