domingo, 5 de julho de 2015

A ARTE DE CERZIR (Joyce Terra Cesar Pires)

A ARTE DE CERZIR (31 MARÇO 1999)



Cerzir; coser, remendar um tecido, de modo que não se note o conserto. Unir, juntar. Intercalar. Verbo irregular.

É uma atividade daqueles que estão pobres mas ainda desejam manter uma certa estética, quem sabe uma certa ética...

Cerzideira é mulher que cirze. Em náutica, é o cabo das testas da gávea, da vela que ocupa o lugar imediatamente superior à grande, nas galeras. Quando jovem esposa, minha mãe cerzia muito bem: meias, camisas...

Cerzidor é aquele que cirze. É também o escritor cujos trabalhos não passam de compilação de obras alheias. Cerzido é um conserto imperceptível.



Não sou boa cerzideira de roupas. Opero remendos, às vezes, em calças e meias de trabalho na roça. O cerzido mais parece desenhos bordados, figuras surreais. Mas não posso dizer que não herdei o talento materno. Faço ótimos cerzidos com a escritura. Com a caneta, ao invés da agulha, consigo elaborar um discurso coerente, lúcido e inovador, quando pesquiso e compilo obras alheias. Costumo dar o crédito, no texto. É uma espécie de homenagem às cabeças lúcidas de outros tempos; aqueles que considero meus pais, mães e meus tios. Como tio Marx, p.ex.; ou tio McLuhan. Mãe Rosa (Luxemburgo). Tia Rose (Marie Muraro). Pai ?... Mao (Zedong). Por quê ? sabe Deus... Há tinta no lugar da linha.

Bom. Mas eu dizia, enfim, sou uma boa cerzideira, afinal de contas. Daria uma ótima jornalista, pesquisadora, editora; autora de TV ?... Mas, rompi com meu destino. - Será mesmo ? Como hoje, acabo por descobrir que não. Ainda aqui, em casa, não abandonei minha profissão. Continuo reportando, editando. É: herança genética é forte. Não nos livramos assim tão facilmente. Minha mãe era ótima cerzideira. Também fazia excelentes ovos nevados ... sem quebrar os ovos. Celeste Terra: minha perséfone,quê Deus a tenha. Om Shanti.

Pois bem: como bom cerzidor, que sou, ando em busca de uma nova estética e uma certa ética. Por isso, compilo meus cúmplices. Coleciono ordenadamente certas leis. E o que encontro é a promessa de uma fala que dê significado às nossas vidas.



(Viburno, crônicas brasileiras - do livro Monólogos do Dilema, de Joyce Pires – teatro - fevereiro 1999).

3 comentários:

Linda M. Soler disse...

Muito boas imagens, cerzir, restaurar, reparar são repletos de esperança. Atuar em um mundo que apodrece em muitos aspectos, não é nada diferente; respira fundo e vai habitante do possível. Ainda conhecerei todo seu belo trabalho, Joyce Terra.

Joyce Pires disse...

Linda bem vinda querida.

Joyce Pires disse...

Linda bem vinda querida.