HYPOKRITÉS (do livro Poesia – Joyce Pires, 19 outubro
2015)
Ator é o devoto de Dioniso, aquele que saiu
de si através do êxtase, porque Dioniso mergulhou em seu adorador através do
entusiasmo. O simples mortal, um ântropos, em êxtase e entusiasmo, transforma-se
em imortal, torna-se um anér (herói), ultrapassa a sua medida, seu métron, o
limite de cada um. Assim, ultrapassando sua medida animal, o anér transforma-se
em hypokrités, aquele que responde em êxtase e entusiasmo, ou seja, o ator.
Essa ultrapassagem é um descomedimento, uma violência (hýbris) feita a si
próprio. O hipócrita, daqui em diante, será levado a realizar a metamorfose, a
transformação, em cada tarefa ou obra, durante toda a sua vida. É o destino do
ator: romper com todos os interditos da ordem política, social, sexual,
simbólica ou religiosa. Contrariar todas as regras da Polis, mesmo a “democrática”,
dos deuses olímpicos (patriarcais).
O deus do Teatro é o contestador religioso
da religião política da Polis. A tragédia grega nasce de uma suavização apolínea
desse ímpeto criativo dionisíaco, com intuito educativo. É a apropriação da
píton ancestral da matrilinhagem pelo patriarcalismo nascente. O hipócrita
perde entusiasmo e ganha essa conotação atual de afetação de uma virtude que não
se tem, de impostura, fingimento; falsa devoção ou hipocrisia. Apolinizado, o
hipócrita se configura como violência feita a si mesmo e aos deuses imortais, o
que resulta no ciúme divino e em consequente némesis, a punição pela injustiça
praticada. O ator, anér, torna-se rival dos deuses, o que provoca a cegueira da
razão (áte). O ator caiu nas garras do destino cego (moîra). O Estado suporta a
metamorfose apenas no âmbito da fertilidade e da fecundidade; na dimensão da
sensibilidade e das artes. Quando a transformação alcança o nível da reflexão,
ela é tolerada apenas como tragédia - tragoidía, “o canto do bode” (trágos,
bode + oidé, canto).